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Por onde anda a palavra Amor?

Posted in Literaturância on 08/03/2021 by Pedro Miguel Gon

Filhos da Guerra ou Filhos de Sebald?

Posted in Literaturância with tags on 28/12/2017 by Pedro Miguel Gon

A guerra exerce um tal fascínio no homem que não se pode falar da evolução da Humanidade sem se falar da guerra. Parece que é nessa situação-limite que se testa a substância da Humanidade, que melhor se redefine a essência da Humanidade, em contraste com a barbárie, e que melhor se esclarece o significado de ser humano. Não é por acaso que passados 4 ou 5 mil anos ainda se fale da Guerra de Tróia. A mãe de todas as guerras? Pelo menos das históricas. E nós, que testemunhámos o séc. XX, remetemo-nos sempre para a Segunda Guerra Mundial, afinal a nossa Tróia. Já se passaram cerca de oitenta anos e outros tantos hão-de passar sem que se deixe de escrever, refletir e espantar com o que aconteceu, para o bem e para o mal, nessa guerra. A guerra que tudo fez mudar nos equilíbrios do mundo e que terá mudado o próprio homem: mudou, pelo menos, os olhos com que se observa o homem.

O choque de ver confirmado que não somos, afinal, tão civilizados quanto se julgava, que não somos tão nobres, tão fortes e infalíveis, tão seguros e confiáveis, ressoa por toda a sociedade e faz com que se volte constantemente, com maior ou menor sensacionalismo, ao tema da Segunda Guerra. Ninguém visita tanto o tema da Segunda Guerra quanto os americanos. Bom, esse é, para eles, o momento em que entram no fluxo da história universal. Não lhes pertencem as vicissitudes de Romanos e Bizantinos, desconhecem as intrigas medievais, não assistiram ao Renascimento, mas têm a Segunda Guerra Mundial, que venceram. Os europeus ofereceram de bandeja uma Tróia aos americanos – e agora nunca mais se calam.

Tal como a história de Tróia é a história dos que a venceram, também a história da nossa Tróia tem sido sobretudo uma história dos vencedores. Os alemães que estão no epicentro da Segunda Guerra não se manifestaram muito. Não gastaram a interpretá-la nem um milésimo da energia que gastaram a fazê-la. Mas, em termos práticos, os alemães não ficaram incapacitados de o fazer. Podiam-no ter feito. No entanto, a esmagadora maioria dos historiadores que se entregaram à análise e interpretação desse período são os americanos, ingleses, franceses, russos. Os vencedores. Por que é que os historiadores alemães se silenciaram? No campo da literatura os Aliados produziram uma plêiade de obras tendo como pano de fundo a Segunda Guerra, mas na esfera alemã essa obras são muito menos frequentes. Por que razão tantos escritores e jornalistas se abstiveram de registar o decurso e o desfecho da destruição na Alemanha?

W.G. Sebald interessou-se por esse aspecto da psique alemã e desenvolveu sobre o assunto uma reflexão pertinente que apresentou nas chamadas Lições de Zurique em 1997. Mais tarde coligiu esses textos no livro “História Natural da Destruição”, um título algo irónico e amargo, já que é tributário de expressões usadas por alguns dos que testemunharam o horror do fim da guerra na Alemanha. O livro parte da perplexidade de constatar que “a experiência de uma humilhação nacional sem precedentes sentida por milhões de pessoas nunca encontrara verdadeira expressão verbal e que os que a sofreram diretamente nem a partilharam uns com os outros nem a transmitiram aos que nasceram depois”, passando todo o povo alemão para uma nova experiência de construção, segundo palavras de Alfred Doblin, “como se nada tivesse acontecido”. W. G. Sebald deu especial atenção “ao horrível bombardeamento de cidades indefesas” levado a cabo por americanos e ingleses em múltiplas operações, a mais famosa das quais foi a Operação Gomorra, que praticamente fez desaparecer a cidade de Hamburgo. Note-se bem que estas operações tinham como alvo explícito as populações civis das cidades, afinal uma ação eticamente indefensável quanto tantas outras atribuídas aos nazis. Os enormes bombardeiros aliados, os Lancaster e os B-17, largaram nos céus da Alemanha toneladas de bombas. Não foi só Berlim a ficar destruída, foram 131 cidades alemães reduzidas a escombros, erradicando a vida urbana e condenando milhões a condições de sobrevivência, atirados de chofre para o “estádio de evolução dos recolectores nómadas”. A quantas pessoas não terá faltado o “legítimo desejo de viver”?

É em especial no texto “Guerra Aérea e Literatura” que Sebald analisa esses momentos finais de sistemática destruição das cidades alemãs. É quase inimaginável que não tenham ficado cicatrizes psíquicas no povo alemão. Onde é que na literatura alemã ficou plasmado o horror e a dor do povo alemão? Aqui está a perplexidade de Sebald: não ficou. “A capacidade que as pessoas têm para esquecer o que não querem saber, para não ver o que têm diante dos olhos”, escreve Sebald, “raras vezes foi tão posta à prova como nesses tempos da Alemanha”. Deveria haver uma “literatura das ruínas”, mas, a aceitá-la, é muito incipiente, as poucas obras sobre o assunto apareceram em editoras marginais e fora de coleções consentâneas. Os alemães nem sequer protestaram contra a agressão bárbara feita contra populações indefesas. Calaram-se. Assim, “este mutismo, esta maneira reservada e alheada constitui o motivo por que sabemos tão pouco do que os alemães pensaram e viram entre 1942 e 1947”. Além disso, “esta falta de relatos contemporâneos não encontrou compensação depois de 1947”. Então o que faziam os escritores alemães nesse período mais trágico da história mundial em que o povo alemão tinha um protagonismo destacado?

Mesmo contando com os escritos de jornalistas e repórteres estrangeiros que percorreram a Alemanha devastada, Sebald considera que muito pouco se escreveu sobre aquele período. Só uns poucos autores tentaram traduzir o horror que se vivia nas cidades destroçadas: cidades sem ruas, sem casas ou prédios, sem transportes, sem canalização, sem esgotos, sem serviços médicos, polícias ou justiça. Só ruínas e entulho. E cadáveres. Muitos cadáveres e muitos ratos gordos, gordos, nuvens de moscas gordas, gordas, e um ar sufocante de tão fétido. Por terem gerado obras tão genuínas, tornaram-se impossíveis de ler de tão amargas, cruéis, repulsivas, onde os pormenores do macabro ainda hoje indispõem os mais robustos leitores. Os alemães estavam emersos nessa vida repulsiva e não sentiam o mínimo gosto em ler sobre essas mesmas situações degradantes que as obras retratavam. Ninguém as procurou ler e os seus autores acabaram “afastados da memória cultural”. Os leitores alemães precisavam do oposto, precisavam de esquecer que estavam reduzidos a uma vida miserável. A melhor dessas obras terá sido “O Anjo Silenciado”, de Heinrich Boll, uma obra escrita nos anos 40 que se revelou tão dura que só veio a ser publicada em 1992 e ainda hoje dizem que é difícil de ler. Ironicamente, as obras que mais relatam a “destruição das cidades e a sobrevivência num país em ruínas” não são contemporâneas da destruição e têm um carácter documental, como é o trabalho de Hubert Fichte e de Alexander Kluge. Neste reduzido lote de autores que lutaram explicitamente contra o esquecimento e pela memória da catástrofe, Sebald incluiu Jean Améry e Peter Weiss, autores de língua alemã mas de origem judia, que tiveram a surpresa extra, durante a guerra, de se verem espoliados pelos próprios concidadãos. Assim, estes textos, apesar de claros e factuais, estudam sobretudo o horror do genocídio e não tanto o caos das cidades alemãs e o dia-a-dia dos alemães.

W.G.Sebald considera que outros autores alemães escreveram sobre a guerra sem a chegarem a retratar. O contexto dessas obras era o da Segunda Guerra, mas tratando a guerra como uma ilustração estereotipada, em pano de fundo, para outros dramas mais importantes. Retratam uma realidade parcial, quase de costas para a ruínas, como se a destruição fosse um pretexto para outra coisa muito mais nobre. Lá está: muito mais nobre… As ruínas não eram ruínas, mas um cenário de algo muito mais importante… Autores contemporâneos da derrocada alemã como Hermann Kasack, Hans Erich Nossack, Peter de Mendelssohn e até, mais tarde, Arno Schmidt, criaram obras que, pese embora alguns instantes de atenção factual, perdem-se em “exagero filosófico”, “falsa transcendência”, “tendência para o melodramático”, mantendo uma estética anterior ao colapso. Os alemães nunca são apresentados como vítimas, mas como heróis que persistem em lutar contra todas as adversidades, mesmo quando toda a sociedade implode e desagua no absurdo. Nem mesmo Thomas Mann, com o seu “Doutor Fausto”, fez uma transposição literária da destruição das cidades alemãs, pois a obra consiste num debate filosófico que discute a relação entre ética e estética, ou seja, desvia-se da realidade factual que então se vivia.

Pode-se ainda apontar um terceiro tipo de escritor e de escritos sobre a Segunda Guerra e o colapso dos alemães. Alguns autores criaram obras que consistiram num exercício consciente de reconstrução da realidade, saldando assim as contas com o passado, muitas vezes por razões pessoais. São obras onde a ficção se coloca ao serviço da falsificação da história, uma via que atenua a sensação de tergiversação da realidade. O mais ousado dos autores que utilizou este processo foi Alfred Andersch, alguém que tinha fortes razões para pretender camuflar as relações antes da guerra que tornariam evidente o seu passado nazi, não hesitando, para isso, manipular factos. Alfred Andersch apresentou-se ao público como um “emigrante interno” (para se distinguir de Thomas Mann, que abandonara a Alemanha nazi em 1933) e como membro da “resistência passiva” ao regime nazi. No entanto, não conseguiu esconder totalmente a “linguagem fascista” nos seus textos e consultando a produção literária contemporânea da guerra veio a verificar-se como estava em linha com o regime.

Tudo somado, fica sempre a noção que os alemães ainda não tiveram o seu momento para mergulhar de cabeça na ferida psíquica mais profunda do último século e que isso talvez seja determinante para o que possa vir a ser a construção futura da Europa.

Surge esta reflexão porquê? Porque tive a oportunidade de acompanhar há pouco uma série televisiva realizada por alemães e que retrata o contexto da Segunda Guerra na Alemanha. Finalmente os alemães a contar por si mesmos aquilo que andaram sempre a evitar. A série produzida pela ZDF recebeu em Portugal o título “Os Filhos da Guerra”, mas o título original tem um sentido muito mais sugestivo que o título português não conseguiu traduzir. O original é Unsere Mutter, Unsere Vater, ou seja, “As nossas mães, os nossos pais” o que é mais significativo neste contexto de revisitar o passado trágico por parte dos alemães. Esta série é uma das poucas séries sobre a Segunda Guerra em que o foco narrativo não é o americano (leia-se: os Aliados), mas sim o alemão. Nesta narrativa os alemães não são os outros; desta vez os alemães somos nós. O normal é converter os alemães num personagem coletivo que desempenha o irremediável papel da encarnação do MAL. Um personagem abstrato, o papel fácil de Lobo Mau, que convém a qualquer argumentista que escreve em função da tradição de elogio das forças vencedoras. Mas, escusado seria dizer, um personagem destes é muito pobre e nada representativo de uma realidade histórica. Tem que se reconhecer nos alemães a mesma densidade humana que se reconhece nos outros povos e, por isso, a variedade e a diversidade que implicam contradições e tensões dentro dos grupos sociais.

W.G. Sebald considera que os alemães da segunda metade do séc. XX são “um povo nitidamente cego para a história”, em virtude dos anos de recalcamento em que se reergueu o estado alemão que hoje domina a Europa – e que o mundo toma por superpotência tímida. São cegos para a história porque cresceram virados para o futuro, deixando de lado a história recente. Talvez a produção desta série queira significar um despertar de consciência entre os alemães para a necessidade de processar o obsesso mnésico que ficou recalcado. Em todo o caso, esta fuga à história teve uma virtude, pois Enzensberger considera que a inconsciência dos alemães foi “a condição do seu sucesso” na reconstrução do novo estado.

Os alemães estarão com vontade de olhar o passado? E o que poderão vislumbrar desse passado se aquilo que se passou ficou registado pelo olhar dos vencedores? Não será legitimo querer ver, mesmo, pelos próprios olhos? Parece sintomático que a exibição da série tenha sido motivo de amplo debate na Alemanha e que a exibição de cada episódio tenha registado altos níveis de audiência.

Aparentemente à data em que a série estreou na Alemanha, em 2013, as reações foram as mais diversas. Consta que as reações na Polónia e na Rússia foram as piores, onde os media acusaram os produtores da ZDF de estarem a disfarçar a história. Parece que não gostaram de ver desvirtuado o consagrado personagem-fantoche tradicionalmente entregue aos alemães como bastonários de todo o Mal que os bonzinhos conseguiram derrotar. Nenhum dos intervenientes quer abandonar o papel tradicional. Mas atrevo-me a sugerir que se Sebald estivesse vivo, na altura em que a série se exibiu, teria comentado: finalmente os alemães assumem que também foram vítimas da guerra. E neste sentido, os argumentistas e produtores da série alemã que agora mergulham na história são, afinal, os “filhos de Sebald”. E não os filhos da guerra.

Epílogo. Não se acredite que a guerra é um fenómeno arrumado no passado. Quem viveu a destruição e depois a reconstrução pode ficar com a impressão que estes longos 80 anos de paz na Europa, sempre numa evolução positiva de crescimento da prosperidade social e económica (pese embora pontuais vicissitudes), são irreversíveis. Se cairmos na inocência de acreditar que o desenvolvimento da sociedade é um continuum crescente que há-de levar a sociedade a contextos cada vez melhores, pomos de lado a possibilidade de retrocesso civilizacional. O período da Segunda Guerra foi tão mau que muitos acreditam que a Europa jamais se deixará voltar a cair numa situação catastrófica como aquela, pois os cidadãos e os líderes não teriam desculpa para a inconsciência que outros tiveram. Mas o tempo passa, as gerações mudam, e agora são adultos certos indivíduos que perderam a sintonia com o significado existencial da Segunda Guerra. Só a conseguem compreender como um acontecimento em si, sem nexos, sem causas e efeitos nas múltiplas dimensões humanas, e, por isso, isolado das suas vidas particulares. Talvez a evolução das sociedades humanas não seja um continuum estável, mas uma sequência repetida de ciclos, onde as sociedades passam sempre pelo mesmo, ora construção, ora destruição, de modo que a catástrofe pode vir a repetir-se. Se calhar é de esperar a perda dos valores democráticos e consequente crescendo do autoritarismo, a degradação dos processos democráticos em favor de processo autocráticos, o desprestigio dos homens íntegros perante os homens-show populistas, a diminuição do pacifismo e emergência do belicismo, a perda da coesão para a emergência dos nacionalismos, a perda de respeito pela dignidade humana e pelo valor do trabalho, até nos acharmos todos num beco sem saída onde abundam valores de todo o género que ninguém quer abdicar. Soa familiar?

Vende-se

Posted in Literaturância on 19/04/2014 by Pedro Miguel Gon

Vende-se texto em segunda mão. Só foi lido duas ou três vezes. Como novo. Apenas lhe falta um personagem credível e uma focalização coerente, de resto funciona bem. Os interessados poderão contactar pelo telemóvel 96 50 63 933. Entrego em mão, sai mais barato. Fará qualquer autor feliz.

 

 

 

 

 

O Decote

Posted in Literaturância on 28/07/2013 by Pedro Miguel Gon

O meu amigo Vandelli tem uma facilidade masculina em ficar disponível para qualquer pessoa do sexo oposto. Uma mulher que lhe dirija a palavra, mesmo de longe, encontra sempre uma simpatia preferencial que deixa, nela, a permissão de mais simpatia. Algumas mulheres ficam logo a reluzir; outras preferem ser pessoas a serem mulheres.

Pode uma mulher perguntar-lhe, onde está a esfregona?, que ele se aproxima solicito, com ou sem esfregona, cheio de intenções horizontais (ele por cima) que mal se notam na capa de ambiguidade do rosto simpático. Sorri. E obtém sorrisos. E quando faz contacto leva a conversa miúda ao mais elevado requinte da palavrosidade com que se sustentam os lugares comuns.

A simpatia de Vandelli mede-se numa escala de vários impactos curvilíneos. A expressão da sua simpatia é proporcional à beleza do decote, cuja beleza é, por sua vez, proporcional à circularidade dos volumes. Um decote é uma paisagem pneumática, diz Vandelli.

Às vezes Vandelli acrescenta com ar sonhador, de quem já esteve mais acordado: a curvatura num decote é a promessa de movimento. O motor imóvel sobre o qual não é preciso teorizar.

E se um dia…

Posted in Literaturância on 25/07/2013 by Pedro Miguel Gon

E se um dia uma palavra se revoltasse contra a ditadura da gramática e fugisse ao dicionário? Todos os professores dizem que isso nunca aconteceu, mas garanto-vos que houve uma palavra que já uma vez o fez.

Um dia a palavra AMOR cansou-se da falta de amor das outras palavras e desapareceu sem ninguém dar por ela. Pegou nas suas quatro letrinhas, convencida que ao desaparecer iria fazer falta a muita gente e, por um processo misterioso, abandonou todos os dicionários do mundo.

Foi tão engenhosa que nenhum poeta, nenhum escritor, nenhum actor, nenhum professor deu por isso. As pessoas continuaram a falar e a escrever como sempre; e ninguém descobriu que a palavra AMOR faltava no dicionário. Nem sequer era uma palavra fugitiva, pois se ninguém dera pela sua fuga também ninguém a perseguia.

Quando a palavra AMOR se escondeu pensou que o seu refúgio iria durar pouco menos de dois meses. Certamente que alguém ia dar conta da sua falta nos dicionários. Mas os dois meses passaram e ninguém deu o alerta. E depois mais dois meses. E mais dois. Havia-se escondido atrás de outras palavras, disfarçando-se com outras letras, e a camuflagem era tão boa que ninguém a encontrou nem por acaso.

Isto que vos conto aconteceu há muito tempo, por isso pergunto: será que a palavra AMOR chegou a voltar aos dicionários? Tens a certeza que ela se encontra lá? Quando foi a última vez que lá foste procurá-la? Tens a certeza que sabes o que realmente ela significa? Se eu fosse a ti pegava num dicionário e corria a procurá-la.

Uma mulher a sério

Posted in Literaturância with tags on 12/03/2012 by Pedro Miguel Gon

 

Francisca saiu do quarto com as cuequinhas e o soutien na mão (e o telemóvel) para ir tomar banho. O aparelho vibrou e Francisca consultou-o: a Joana fazia mais uma pergunta; Francisca respondeu, sem conteúdo, só o acto (a pergunta era parva e desprovida de possibilidade de resposta). Depois resolveu acender um cigarro: foi para a varanda de trás e sentou-se num pufe vermelho a fazer publicidade da La Roche. O cigarro na mão direita e o telemóvel na mão esquerda: usando apenas o polegar ia verificando as mensagens sms e os comentários no facebook. A parva da Martina estava outra vez adoentada (fingia-se); a Rute, coitada, estava triste com a cena que o grupo lhe fizera na noite anterior; o Lourenço continuava o carroceiro do costume; e de Carlota, nenhuma pista.

Apagou a prisca e foi para dentro. Ia tomar banho. Recolheu novamente as cuequinhas e o soutien que deixara sobre o cadeirão junto à porta da varanda de trás e entrou na casa de banho. Fez um xixi com o telemóvel na mão (se tivesse alguém perto de si estaria a palrar os inúmeros fogachos de impressões que lhe afloravam em mente como fogo de artificio). O aparelho dizia-lhe que o Eduardo acordou, mais uma vez, mal disposto: este tipo está sempre insatisfeito. Aproveitou para comentar o estado da Marta, sem ser muito pessoal, pois não queria comprometer-se com nada: a Marta é uma cola.

Olhou-se ao espelho. Limpeza de pele, cuidado especial com os olhos, escovar o cabelo. O aparelho (pousado ao lado do estojo de beleza, dos frascos de perfume e dos cremes) vibrou: consultou-o. Ainda não era a Carlota. Estaria ainda a dormir? Era o João com mais um comentário estúpido que toda a gente ia fingir ser engraçado com essa maneira muito portuguesa de desviar a frontalidade num aparente acordo (Não faz mal…). O João era um parvo do mais profundo que há, mas, ao mesmo tempo, um querido; podia-se fazer dele o que se quisesse desde que não contrariado, como se faz com as crianças. Logo a seguir recebeu um sms do João: queria saber se a Francisca ia almoçar em casa ou se ia comer por fora. Que chatice, não estava com disposição para aturar o João: não respondeu. Não havia maneira da Carlota dar sinais de vida. Mandou uma mensagem à Martina comentando: o João perguntou-me se vou almoçar em casa, o que é que ele quer?

Voltou à cozinha e abriu o frigorífico: retirou um iogurte líquido probiótico. Bebeu-o enquanto olhava pela janela, tentando evitar as fachadas dos prédios, tinha uma nesga de paisagem sobre um jardim urbano (encastrado entre prédios, mal cuidado e com mobiliário urbano mal conservado).

Foi para o quarto e fez a cama num instante. Pensou: vou tomar banho. Depois escolheu a roupa com todo o critério. O aparelho vibrou: a Martina respondia: os pais do João foram a Londres por estes dias e ele deve estar sozinho, uma vez que o Lúcio foi fazer a tal viagem ao deserto. Francisca sentou-se na beira da cama e perguntou teclando muito rapidamente: o Lúcio já foi para o touareg? Finita a mensagem, pensou: safado, nem sequer se despediu para não ter que falar comigo; ele sabia bem que eu queria ter uma conversa séria. Francisca achava que os outros tinham que ter a certeza quanto aos próprios sentimentos por outrem. Sim, debitou o aparelho. Francisca ficou irritada. Pegou no aparelho e no maço de tabaco e voltou à varanda de trás. Era a varanda mais resguardada, menos vulnerável ao ruído do trânsito que passava na avenida fronteira ao prédio. Sentou-se no pufe, acendeu o cigarro e com o expedito polegar mandou outra mensagem à Carlota. Era a terceira mensagem nessa manhã. Vamos tomar café ao Ritz, ou não?

Um tipo que não conhecia de lado nenhum, mas que adicionara recentemente aos amigos do facebook, comentou o estado de espírito dela, um comentário oco, um grunhido gráfico só para se fazer notar. Francisca agradeceu calorosamente. Como se o mundo fosse brilhante.

Voltou para a casa de banho onde as cuequinhas e o soutien a aguardavam em cima do armário do lavatório. Sentou-se na sanita e experimentou fazer outro xixi, porque não queria ficar com uma bexiga preguiçosa. Escovou os dentes, olhando-se ao espelho. Ainda não estava velha, pensava ela com profundidade.

Vou tomar banho, decidiu. Abriu as portadas do chuveiro e pôs a água quente a correr. Tinha horror a água fria e preferia delapidar a energia do planeta a suportar um horror pessoal. O aparelho vibrou: um sms da Beatriz perguntava se ia tomar café ao Ritz. Francisca respondeu que pensava que sim, mas ainda não tinha a certeza, ainda não decidira, depois lhe confirmaria. Foi à sala e com o aparelho na mão foi visualizando o estado de espírito de certos amigos de facebook, ao mesmo tempo que dava uma arrumadela rápida a objectos (recentrando-os na geometria apropriada), a almofadas (concertando a sequência ideal) e a sofás e cadeiras (questões de esquadria). Em suma, deixando tudo no sítio.

Voltou à casa de banho. Uma nuvem de vapor praticamente impenetrável. Fechou a porta, despiu o roupão e consultou uma última vez o aparelho para ver se havia mensagens da Carlota. Nada. Meteu-se debaixo de água e tratou ritualmente do corpo, confirmando a regularidade das linhas mestras da silhueta, o volume das coxas, a textura do abdómen. A certa altura, Francisca escutou o som do aparelho atravessar as brumas do chuveiro anunciando a chegada de uma mensagem. Ficou nervosa, irritada e furiosa ao mesmo tempo. Terminava, invariavelmente, o duche com o seguinte pensamento: tenho que me convencer a fazer mais exercício.

Limpou-se à toalha turca de cor ocre. Enxugou a cara com cuidado (a cara era uma secção à parte, com cuidados especiais), depois o cabelo e o peito. Finalmente as mãos. Pegou no aparelho: um sms do João convidava-a a almoçar com ele no Gira. Essa mensagem podia esperar. Tratou de se cobrir com o creme reafirmante, primeiro, e depois com o creme anti-rugas; tudo produtos exclusivos da Garniettet que já tinham vendido mais de trezentos milhões de unidades. Vestiu as cuequinhas (um momento ontológico que a tornava absolutamente real), acomodou o pensinho e depois o soutien, operação mais demorada que justificava mais ponderados ajustes, pois nenhuma mulher tem os seios absolutamente simétricos em localização e volume. Vestiu as calças e a camisola que a esperavam em cima da cama.

Resolveu telefonar à Carlota. Demorou a atender. Perguntou-lhe porque ainda não respondera a nenhuma das mensagens e a Carlota respondeu, num tom de súplica, que ainda não tinha tido disposição para tal e segundo motivos subentendidos que Francisca tinha toda a obrigação de saber. O ónus estava, claro está, do lado de Francisca. Sim, vamos tomar café ao Ritz. Ficou confirmado para as 14:00.

Francisca fez mais uma visita à varanda de trás e voltou a sentar-se no pufe vermelho. Acendeu um cigarro e com o polegar esquerdo aceitou o convite de João para ir almoçar ao Gira. E depois respondeu com um Like a um comentário engraçado do Eduardo sobre qualquer trica que tinha a ver com o mundo real. Entretanto o João confirmou que a vinha buscar a casa à uma hora. Francisca deteve-se um pouco projectando o que seria almoçar com o João no McDonald’s, pegou no telemóvel que decididamente a ajudava a pensar: e o polegar convidou a Marta a vir almoçar com ela e com o João ao Gira.

Francisca voltou ao quarto. Mirou-se ao espelho. E mudou de calças. Esteve para mudar de camisolinha, mas bastou optar por outro casaquinho mais adequado ao conjunto. Finalmente encerrou o caso: estava vestida para esse dia, para bem ou para o mal, com a fé de uma aposta num casino. Um novo sms avisava que Marta ia ter com ela ao Gira para almoçar.

Resolveu consultar a segunda conta de correio electrónico e preferiu usar o lap-top que estava ligado na sala. Sentou-se no sofá e gastou 30 minutos a reenviar emails que lhe tinham sido reenviados numa cadeia gigantesca de reenvios que já havia cruzado várias vezes a rede sem centro do mundo virtual. Pensou com bonomia: como é que há gente que se permite gastar tempo a fazer estas palhaçadas inúteis e depois as faz circular na internet?

Enviou um sms à Joana a informá-la que ia almoçar com o João. Joana devolveu dizendo: que bom. Depois enviou outro sms ao João a dizer-lhe para não se atrasar, porque às 14:00 queria estar no Ritz. Por volta da uma hora, quando João já devia estar a chegar ao prédio, Francisca não conseguiu dominar o impulso de lhe enviar um sms a perguntar se sabia do Lúcio. Trinta segundos depois João respondeu: foi fazer a tão badalada viagem iniciática. Quinze segundos depois outro sms comentava, dubiamente: gostos não se discutem. Dizendo implicitamente que viajar, para ele, era ir para Paris, Londres ou Viena, isso sim. Dois minutos depois o aparelho de Francisca voltou a vibrar e exibiu a palavra: desce.

Os três jovens e os três telemóveis encontraram-se como combinado no Gira. Deram umas voltitas pelas lojas e depois foram ao McDonald’s. Apesar do cheiro a fritos até era positivo comer hambúrgueres nestas incursões rápidas ao mundo das refeições pragmáticas, onde não se parava muito tempo: a refeição terá durado vinte minutos. E depois passaram à esplanada do Gira, onde beberam o primeiro café.

Marta desviou o olhar do seu telemóvel e disse: sabem qual é a nova tara do Eduardo? Só Francisca perguntou: qual? E Marta disse: o Eduardo agora acredita que uma mulher a sério é como Neytiri a proteger o seu Jakessuly, e não essas patas a encherem-se de rímel (segundo Marta, o Eduardo já reproduzira isto dezenas de vezes essa semana).

O Eduardo é um idiota, disse João enquanto teclava no telemóvel. Como se o Eduardo olhasse para alguma garota sem rímel, pensou Francisca. Depois mandou um sms ao Eduardo a dizer: eu, o João e a Marta estamos no Gira. Mas não dava para perceber se seria um pedido de socorro.

Depois a Marta disse para a Francisca: a Beatriz acabou de me mandar um sms a perguntar se estou contigo… que lhe digo? Esqueci-me, respondeu, e revirou o olhar numa hipótese altamente trágica. Francisca enviou imediatamente um sms pedindo à Beatriz vir rapidamente ter com eles: agora quase ansiava a presença de Beatriz. Porque não tinha ela vindo mais cedo?

O outro telemóvel não tardou a chegar; devia estar nas redondezas. Antes de mais nada Marta contou-lhe da nova tara de Eduardo. Ele que vá mas é brincar com as bolas nas urtigas, disparou Beatriz. Aquela resposta devia ser para outra pessoa.

João levantou os olhos do telemóvel e comentou: se vocês tivessem uns tin-tins tão salientes e acessíveis como os nossos, tão fáceis de tocar, não gozavam com a masturbação masculina; é só inveja.

Vamos para o Ritz, perguntou a Francisca, como se o lóló do João a incomodasse. Mas não se levantou quando o aparelho lhe pediu atenção: recebera um sms da Martina a dizer que o João tinha colocado um comentário no facebook, dizendo como estava a curtir estar com três gatas na esplanada do Gira. Francisca já estava impaciente.

Vamos, acudiu a Marta, é para ir ou não é para ir?

A Carlota já lá estava, a fumar na esplanada, com um desconhecido a seu lado. Ninguém tinha o número dele. Francisca não conseguia fechar a boca. Pensava: por isso é que ela não respondia às minhas mensagens. Francisca e Carlota beijaram-se sem que esta largasse o telemóvel. Quis sentar-se ao lado dela, quis fazer-lhe todas as perguntas sem poder fazê-las diante do desconhecido; por isso ria muito, não parava calada um segundo e não dizia nada com nada. As apresentações: uma larachas comuns, quem conhece quem e o quê, donde vem, por onde andou e tal. Sentaram-se os telemóveis e por meio minuto houve a oportunidade de buscarem os olhos uns dos outros. Nesse meio minuto as raparigas estavam excitadas, todas elas com o bonito aspecto de bonecas, mas com gestos infantis ancorados em torno do cigarro e do cabelo esticado, deixando a desenxabida impressão de adolescentes fáceis. João colocou o seu aparelho topo de gama em cima da mesa onde já estava exibicionado o aparelho do desconhecido.

Logo a seguir Francisca sentiu uma impaciência no polegar e quando procurou o aparelho no bolso não o encontrou. No outro bolso também não. Ao terceiro bolso vazio sofreu um aperto na aorta. Onde está o meu telemóvel? Pegou na carteira e despejou-a em cima da mesa metálica, sempre a grasnar e sem os outros perceberem que ela procurava o telemóvel. Dizê-lo era despir-se em público. Num instante recordou-se da sensação de desespero que a tomara aquando da última privação de telemóvel (já perdera sete daqueles aparelhos) e ficara horas sem o acessório, incomunicável, isolada da sociedade, sentindo-se diferente da humanidade aceitável.

De repente calou-se. Automaticamente o olhar dos outros recaiu sobre si. O que foi, perguntou a Marta. Está-se a passar, comentou a Beatriz. Tu estás bem, riu-se a Carlota num tom ligeiramente interrogativo. Até que não resistiu mais e perguntou: alguém viu o meu telemóvel? O drama foi acolhido com impaciência, a mesma dimensão de perguntar: onde está o meu casaco. Mas Francisca sentia-se despida: era como se alguém lhe conseguisse ver, à transparência, as mamas, o púbis, o refego do abdómen. Já procuraste bem? Francisca voltou a percorrer a fundura de todos os bolsos que transportava consigo.

Vocês deviam ver a fotografia que o Eduardo acabou de colocar no Facebook, disse a Beatriz com o telemóvel à direita e o cigarro à esquerda. Já vi, disse o João. Qual, perguntou a Carlota. Aquela do verão passado, na Figueira, indicava a Marta, quando juntámos o grupo naquele restaurante da marginal… já não me lembro o nome. Francisca acabou a vistoria e ficou sem lugar para as mãos.

Não encontras, perguntou o desconhecido. Não, miou ela, sem se mexer.

Talvez o tenhas deixado no meu carro, atirou o João, e levantou-se brusco. Vou lá ver, disse, já de costas para a mesa. João dirigiu-se ao parque de estacionamento sem perder a atenção no aparelho e a andar conseguiu mandar um sms ao Eduardo e ao Lúcio informando que a Francisca tinha perdido o telemóvel outra vez. Pouco depois regressou à esplanada do Ritz com a mesma expressão indiferente com que partira. Sentou-se e fingiu estar alheado como se aquilo que encontrava no aparelho contivesse um desafio intelectual absorvente.

Então, perguntou o desconhecido, estava lá? João não lhe dispensou um olhar, mas arquitetou um sorriso dirigido a Francisca: toma lá, estava no banco do pendura. Francisca agarrou no aparelho, puxou-o contra o peito e consultou imediatamente as mensagens. Num instante recuperou para a vida; afinal o dia não estava perdido. E por um milésimo de segundo, praticamente simultâneo ao arfar que lhe restaurava a vida, viu aflorar no palco da consciência o pensamento, “sou uma mulher a sério”, logo esmagado por um esquecimento necessário à sedução. Aquele desconhecido era mesmo um querido.

 

 

 

 

 

Pedro Miguel Gon

Coimbra, Janeiro 2012

O Clique

Posted in Literaturância with tags on 02/08/2011 by Pedro Miguel Gon

Há uma clareira no topo da montanha onde um indivíduo aparece periodicamente. Ele só vem quando a montanha se encontra na mais íntima deserção. O automóvel corta o silêncio dos bosques com um ronco esforçado; e quando chega, abandona o carro e senta-se, adiante, numa pedra que parece uma ponta de iceberg de tanto estar enterrada no húmus.

Deixa-se ficar durante muito tempo, por vezes até amanhecer. Normalmente quieto. Só os olhos perseguem os súbitos sons quebrados que sussurram. E depois de um tanto tempo a esvaziar-se, faz o jogo. Por vezes chega, senta-se e começa imediatamente o jogo. Houve, aliás, uma ocasião em que o indivíduo nem se chegou a sentar, tal era a ânsia de fazer a aposta; e partiu de seguida com o resultado encravado na consciência.

Desta vez o indivíduo vinha a arrastar-se. Demorou uma eternidade a sair do carro. Fumou um cigarro como o derradeiro. E foi com uma espécie de remorso que se sentou na rocha. Despiu o casaco e depositou-o com falso desdém sobre as ervas em redor. Depois levantou-se, arregaçou as mangas da camisa, uma por uma, com cuidado, e começou a caminhar para trás e para a frente, diante da rocha, sem ponta de tarefa. E enquanto as pernas burilavam a ansiedade, pequenos gestos amparavam o indivíduo: as mãos esfregando o pescoço como quem quer arrancar uma sensação diferente; as mãos percorrendo o rosto como que a limpá-lo; as mãos espremendo a nuca. O queixo ossudo, a barba cultivada, o cabelo vândalo e pendente como ramos numa falésia.

Finalmente o vento veio. Já tardava. Meteu as mãos nos bolsos, fechou os olhos e parou a caminhada. Sentiu o cabelo agitar-se. E ficou estante alguns minutos, ali, ao efeito do vento, como estátua que se esculpe. E depois de escalar a alma, reencontrou o corpo e pôde mover-se outra vez com decisão.

Estava no casaco. Pegar nele não era agora uma circunstância mas um projecto. Mas no acto notou que algumas folhas secas se haviam agarrado ao casaco e esse detalhe foi suficiente para o desviar do projecto. Surgiu fácil um gesto comum nos indivíduos sedentários: com a dorsal da mão direita sacudiu as frentes do casaco até soltar as poucas partículas secas; e a mão repetiu aquele gesto de esmero sem parcimónia, ficando o gesto por várias vezes quando o casaco já estava austeramente limpo. Só depois voltou ao futuro. Aquele pequeno lampejo de esmero foi o seu último comportamento conservador. Havia sido um gesto semelhante a tantos outros, daqueles que normalmente são atributo de um indivíduo culto e organizado; logo a seguir, deixou tombar nas ervas a consciência para começar o jogo.

A mão no bolso exterior do lado direito. Um objecto metálico. E frio. Encheu a mão nesse objecto e puxou-o para fora; em duas arestas do tambor cintilou a luz da lua. As mãos neutras faziam os gestos desenhados por uma eficácia falsa, abriram-lhe o percutor, o tambor saltou para o lado e fizeram-no rodar. Depois, uma das mãos introduziu um projéctil numa das sete câmaras do tambor com uma rapidez demasiado rápida. Rodou-o de novo e fechou-o. Aliás, rodou-o várias vezes.

As mãos, que foram gémeas desde a nascença, abandonaram-se como parentes muito afastados e esquecidos. A da esquerda esgueirou-se para o bolso das calças, como quem vai dormir zangado. A outra ficou sujeita ao revólver. O metal frio colado à pele, a exalar uma vibração próxima da excitação. Hesitava.

O indivíduo pensou em fumar outro cigarro. Para voltar a ter aquele concreto entre os dedos e poder adiar tudo pelo tempo de dez centímetros de tabaco incendiado. Mas, afinal, a qualquer momento teria de expor-se à decisão. E a sua situação já era irreversível. Era assim, com a carne, com o sangue que decidia. Sempre que chegava a uma encruzilhada vital vinha ali apostar uma decisão, medindo as suas possibilidades de sucesso pelo resultado da aposta. Ele fazia do revólver o acerto da escolha. Os miolos mediam-se com a arma até ao momento do disparo e só no último instante a arma se afastava para disparar para o ar.

Uma única bala no revólver poderia ditar o sentido da sua sorte. A roleta da decisão: se a arma disparasse isso significava não avançar na tal situação em escrutínio; se não disparasse significava que poderia avançar. A escolha tornara-se, assim, uma tarefa metafísica. Não era por um cálculo racional incertamente humano que conseguia ler o arbítrio: entregava-se a desígnios muito superiores – mas em vez de se entregar ao universal, entregava-se à singularidade de uma bala.

Desta vez, porém, o disparo não é para o ar. É para o parietal direito. Encostou o cano do revólver por cima da orelha e esperou, inspirou, a mão vacilou, estava a conter a respiração, não que o pretendesse fazer, tudo em silêncio, aquele que torna os segundos mais longos que horas. Ouviu um clique, estremeceu, e ficou no soslaio da alma.

O Homem dos Balões

Posted in Literaturância on 26/06/2011 by Pedro Miguel Gon

O Catavento-Catarina andava com uma revista na mão segundo a mais recente noção de existência. Cruzou as ruas daquela cidade com a certeza que o corpo era mesmo seu, mesmo se as mamas pudessem ser maiores e as ancas menos pronunciadas. Fungou um pensamento criativo que não passava de percepção impressionada com o brilho do sol que lhe incomodava os olhos claros,

«Poça! Não me devia ter esquecido dos óculos escuros!»

Para seu azar, e nem sequer tinha consciência disso, encontrou o Martelo-Mariana, uma daquelas entidades assertivas que pensa tudo o que sabe e assenta em tudo o que sabe. O que não sabe, não importa, porque não saber é condição de necessidade de não ser importante.

Mal viu o Catavento-Catarina, foi-lhe no encalço e agarrou-o pelo braço,

«Parece impossível!», afiançava, «tu não trazes na cabeça as ideias que eu te dei e que tanto trabalho me deram inventar! Francamente!»

«Não percebo!», debitou a coitada pancada.

***

Chegaram à esplanada do café e o Martelo-Mariana bocejou incessantemente a sua assertividade sobre o pobre Catavento-Catarina que só pronunciava alegóricos sim, sim, não, talvez, não sei, talvez, como queiras.

O Catavento-Catarina viu uma oportunidade de fazer o mundo tender para o seu lado ao ver ao longe o Joaquim-Pim-Pim que caminhava meditabundo como quem alinha uma colecção de peças de dominó. Levantou-se com uma desculpa rápida (zzzzzz…) e foi ter com aquele que avistara.

«Olá!», disse ela ansiosa.

«Estás favorável ao vento?», indagou ele, por sua vez, como quem tem uma peça na mão que terá de ser arrumada com o cuidado da história e dos séculos.

«Mais ou menos…», voltou ela, e depois retomou, «Sabes alguma coisa do Homem dos Balões?»

«Hoje não sai de casa, seguramente. Está muito vento. Talvez amanhã.»

E olhou para o céu como se pudesse censurar a teimosia das nuvens.

***

O Homem dos Balões era um homem inteiro, alto, pendente como um penhasco, e passeava os seus balões pela rua. «Os pensamentos são como os balões», murmurava ele, sem pensar que fosse imaginação trazer os cordéis pela mão.

Não fazia mais de meia hora que estava na rua quando apareceu o Catavento-Catarina fazendo bailar para ele um sorriso de brisa, como um novo e bonito balão que se junta aos outros, sem que nenhum se exclua reciprocamente.

«Está um dia bonito hoje», suspirou ela, «sabia que te podia encontrar na rua».

Ele teve a sua maneira especial de sorrir, que era mostrar o quão bonitos são os balões e que, por isso, valia a pena o sacrifício de os carregar,

«Se não tens cuidado com o modo como se transportam os balões, os fios com que se prendem emaranham-se e fica tudo numa confusão. Podes mesmo deixar fugir balões sem o saberes. E ficas mais pobre, ou, talvez, arruinado», respondeu o Homem dos Balões.

Os olhos do Catavento-Mariana testemunharam a mudança de luminosidade,

«Anda, vamos para o jardim!»

«Não sei se será boa ideia», sussurrou ele, «o Joaquim-Pim-Pim questionou uma ligação nos meus cordéis e estou preocupado.»

«Mas o dia está bonito!»

«Pois estás.»

Ela sorriu e ruboresceu ligeiramente.

«Mas estou inquieto e tenho receio de fazer estoirar uma tempestade…»

E ficaram os dois a olhar o céu, à procura de possíveis nuvens.

***

Quando o Martelo-Mariana os viu de mão dada no jardim não hesitou em fazer zarpar uma cilada de vendavais. Como qualquer pessoa-nuvem-trovoada, que nunca conseguiria segurar um único balão por mais de cinco minutos, Martelo-Mariana sapateou perguntas e interjeições que nunca teriam destino a não ser o presente em vias de passado.

«Intelectualice!» exclamava cada vez que o Homem dos Balões mostrava o rigor dos nós entre os cordéis com que pacientemente atava os frágeis e delicados balões.

Para o Martelo-Mariana tudo tinha que ser reduzido ao senso comum com que amordaçava a realidade na banalidade das recordações pessoais. Nenhuma outra hipótese era viável, nenhuma outra planura era possível.

«Lá estás tu com os balões! Porque não os deixas em casa?», borrascou, tilintando relâmpagos nos dentes, o Martelo-Mariana.

«Não é possível. Tu também deixas a memória em casa?», respondeu o dono dos balões.

«Às vezes deixo os óculos em casa!», confessou o Catavento-Catarina.

***

Agarrando a ramagem de cordéis e cordões, o Homem dos Balões orientou os balões contra a ventania, sabendo que a melhor maneira de resistir seria enfrentar a realidade. E fez cara séria ao dizer,

«Estes são os meus balões. Estão perfeitamente organizados. Onde estão os teus balões?»

«Que balões! O que interessa é a mão nua e crua!», rosnou o Martelo-Mariana.

O Homem dos Balões voltou a contemplar os seus balões, tentou duas novas ligações entre cordéis e verificou que não eram compatíveis com o conjunto,

«Não é aceitável. Sem balões vales tanto quanto a rajada. Forte mas pontual, efémera e sem destino.»

«A mim ninguém me diz como é que é o que deve ser. Eu é que sei!»

O Homem dos Balões perscrutou o céu sob todos os ângulos possíveis, pensou que estava na rua errada e, depois, declarou,

«Pensando bem, vejo agora, tu agarras nuvens com essas mãos vazias.»

O Martelo-Mariana ficou furioso com a falta de conformidade de opiniões,

«Intelectualice!»

Em pouco tempo uma nuvem volumosa tornou-se nítida por cima da cabeça do Martelo-Mariana. O Homem dos Balões recuou dois passos; sempre ouvira dizer que só os audaciosos levavam os seus balões para a rua, mas agora estava verdadeiramente preocupado.

O Catavento-Catarina agarrou-lhe no braço e pediu-lhe,

«Tem calma. Só estamos a falar.»

«Não estamos não! Nós carregamos os nossos balões, quer queiramos quer não!»

E a nuvem continuava a crescer e a escurecer, já começava a relampejar, pelo que já era impossível evitar uma tempestade inútil.

***

Às vezes é preciso não sair de casa ou escolher minuciosamente as ruas para não perder os balões. As pessoas nem imaginam que são os balões que nos fazem as casas, que desenham as ruas. De certa maneira, são os balões que impõem o sol.

«Porque transportas contigo nuvens em vez de bonitos balões?», perguntou meigamente o Catavento-Catarina. O mundo tendera de vez para o seu lado e estava imune aos espirros assertivos.

«Ora, porque não.»

«Não vás por aí!», disse o Homem dos Balões calmamente quando o Martelo-Mariana se preparava para partir à bolina,

«Porquê?»

«Porque por aí encontras o vento e o vendaval. E tu és uma nuvem negra.»

«Intelectualices!», exclamou secamente, virou-lhes as costas e deslizou pela rua abaixo.

«Vais estoirar!», gritou de aviso o coitado do Catavento.

«Anda, dá-me a mão. Vamos sair daqui», disse o Homem dos Balões equilibrando os balões numa mão e o Catavento-Catarina na outra,

«Vem aí trovoada!»

Na rua onde o Martelo-Mariana desapareceu estoirou um relâmpago maldoso, o ruído borbotou em pingos, que engrossaram de aleivosia e a torrente de água espraiou-se pela cidade. A nuvem negra virou chuva e acabou por escorrer entre os pés deles para o remoinho de uma sarjeta numa rua qualquer.

Abrigados no vão de uma montra de uma loja, o Homem dos Balões fez uma pequena alteração na organização dos balões e retirou dois nagalhos, acrescentando outro noutra parte do conjunto,

«Pronto.»

Nota – Este foi o texto escolhido por Mário Cláudio e integralmente lido por ele na última sessão do Master Class de Coimbra.

 

Ilha Móvel

Posted in Literaturância on 10/12/2010 by Pedro Miguel Gon

DESILUSÃO

Posted in Literaturância on 31/10/2009 by Pedro Miguel Gon

 

Podem não acreditar mas foi na rua que o meu estômago caiu no chão. Fez aquele som sumido que se ouve num garrafão de cinco litros de água do Luso quando tomba de lado com mais violência. E não me doeu; pelo menos não imediatamente; se não me engano só me doeu duas horas depois, quando um indivíduo apressado e desatento, que seguia ziguezagueando entre os transeuntes ordeiros, me pontapeou inadvertidamente o estômago e este rodopiou no pavimento cimentado como um saco cheio de lixo. Sim, foi nessa altura que me curvei sobre o abdómen ao sentir a guinada violenta a arrancar o resto de vida das minhas entranhas.

A consequência maior foi paralisar-me. Como havia de me deslocar com o estômago de rojo? E aquelas vísceras soltas, como elásticos esticados, davam-me um ar deselegante.

Uma sensação de avaria técnica invadiu-me e trouxe-me ao espírito um episódio do meu tempo de faculdade. Um amigo meu tinha a sorte de ser proprietário de uma velha Dyane branca, tão podre quanto vetusta, mas claramente «apetrechada de asas», bastando abastecê-la com mil escudos de gasolina de tempos a tempos. Um dia o pai desse meu amigo veio vê-lo a Coimbra e resolveu presentear o filho atestando-lhe o depósito do carro. Mas o velho corcel não estava habituado a tanta generosidade de combustível e, quando o depósito ficou cheio, os velhos pontos de fixação do depósito, não habituados àquele peso, cederam e este tombou inteiro no chão gerando uma teoria de sucata que as nossas experiências aladas tinham vindo a contrariar.

Mas ninguém lhe deu pontapés. 

Acho que fiquei horas parado com o estômago no chão, agarrado a mim por todo o tipo de vísceras viscosas e elásticas. Minto. Fiquei dias ali parado. Minto outra vez. Fiquei semanas naquele passeio indiferente. As pessoas passavam por mim e apenas se desviavam. Um advogado espreitou aquela circunstância e sugeriu uma troca de honorários por liberdade; um psicólogo aplicou-me testes psicométricos sem olhar o meu estômago. É verdade que ninguém me voltou a acertar a pontapé. Mas também ninguém me ofereceu de beber ou de comer.

Acho que sabem que um estômago daqueles não volta a dar fome.

 

 

 

O Mundo Oco

Posted in Literaturância on 14/03/2009 by Pedro Miguel Gon

 

 

‘Porque é que existe alguma coisa e não o nada?’ era uma daquelas questões de radical reflexão que inquietavam os mais capazes pensadores no planeta, ponta de um volumoso icebergue de problemáticas filosóficas e científicas intermináveis que se foram reformulando e recriando ao longo de uma história de dezenas de séculos.

Mas um dia tudo acabou.

Um acontecimento inimaginável ultrapassou a profundidade de todas as buscas metafísicas: a conversa parou. Isto não quer dizer que adveio o silêncio; antes pelo contrário. O problema é que a palavra deixou de ser diálogo e passou a ser projéctil. Os pensadores deixaram de comungar uns com os outros; os criadores deixaram de apresentar as suas criações; fazedores deixaram de liderar o que fazer; os divulgadores demitiram a honestidade da notícia; em suma, cada uma das pessoas deixou de escutar o que outro dizia e perdeu a fé de dizer para que outro escutasse. A conversa parara, deixara de ser um motor relacional. Cada um cuidava, tão-só, em afirmar-se. O relacionamento social reduzira-se, sem ninguém dar por isso, ao assertivar recíproco de convicções carentes de intercâmbio fresco.

Face ao esboroar do diálogo, as pessoas menos dadas a chutar com as palavras começaram a recolher-se, um pouco por toda a parte, e cada um à sua maneira, primeiro nelas próprias e no próprio silêncio, apartando-se, sem atitude misógina, de todos; e depois, porque todos os relacionamentos estavam condenados ao conflito numa época de auto-conceitos surdos, as pessoas deram um passo mais restritivo de recolhimento no ermamento. Mas como quem se queria afastar do convívio claustrofóbico não encontrava locais desabitados, sobrou-lhes apenas a alternativa de penetrar no interior do próprio planeta, cavando o refúgio em túneis compridos, onde levavam uma vida de eremitas com pouco mais que a paz de alma e a sobriedade de existirem à luz da sua própria existência.

Não passaram muitos séculos desde o início destas práticas eremitas para que também alguns dos assertivos preferissem esgrimir a inutilidade das suas convicções na sozinhitude dos túneis, o que acrescentava à própria auto-estima uma imagem de dignidade perfeitamente coerente com o impulso assertivo. Iniciando-se um movimento migratório que durou séculos, a maioria dos civilizados passou a viver em túneis herméticos construídos em pedra e betão, algo semelhante a casulos compridos, que se mantinham em constante construção – como um longo caminho na procura do sentido. No fundo as pessoas só queriam ter por onde andar sem deparar com um assertivo que lhes viesse dizer da respectiva surdez.

À custa dos anos e da construção ininterrupta, os túneis proliferaram tão intensamente que passou a ser frequente as novas escavações depararem com as paredes de betão de outros túneis já construídos. Deste modo, para continuar a progressão, os túneis passaram a contornar-se entre si, chegando a seguir colados às paredes de outros túneis ou seguir entre dois, três ou quatro paredes de túneis anteriores. Até se chegar ao ponto em que já não havia terra a separá-los. No subsolo já só havia inúmeros túneis contíguos onde as pessoas circulavam isoladas umas das outras.

Num período de tantos séculos houve ocasião para alguns fenómenos singulares. Acontecia, por vezes, duas escavações de túneis distintos encontrarem-se face a face, de modo que a boca dos dois coincidiam perfeitamente; dois escavadores solitários desembocavam inesperadamente na solidão um do outro; e quando não eram dois surdos-assertivos genuínos, acontecia brotar o singelo diálogo de antigamente, em que a reciproca curiosidade despertava a perguntabilidade que permite a amizade e o amor. Noutros casos menos felizes, um escavador deparava com uma parede de betão de um túnel mais antigo, e, por impossibilidade de recuar ou contorna-lo, decidia demolir a parede, o que conduzia a duas situações possíveis: ou ocupava o túnel invadido, ou cortava o túnel arrombado e prosseguia em frente deixando o outro túnel amputado.

Nessa tarefa civilizacional de escavar a consciência num túnel, foi necessário remover toneladas de terra. O entulho era pacientemente conduzido centenas e centenas de quilómetros para ser depositado no exterior. Inevitavelmente, os milhões de túneis expelindo toneladas de entulhos alteraram a superfície do planeta, ao ponto de ficarem soterrados os mais significativos sinais das manifestações humanas; e, ao fim do primeiro milénio, aconteceu o impensável. Sem ninguém suspeitar, já que estavam todos escondidos, aquela gigantesca movimentação de terras acabou por cobrir as próprias entradas dos túneis. E rapidamente veio a desaparecer todo o vestígio da humanidade.

 

 

 

 

 

 

Pormenor

Posted in Literaturância on 23/10/2008 by Pedro Miguel Gon

 

 

Embora estivesse massacrado, o cérebro ainda levava muitas rotações que não o deixavam adormecer, por isso voltou a levantar-se debilmente para dar um derradeiro gole de whisky. Evitou o copo, porque da garrafa poderia retirar tudo o que quisesse. No fim do fôlego, o whisky a escorrer na goela queima, e na consciência fica só a sensação que, lá atrás, irrompem estalidos pirotécnicos e repetidos clarões de explosão, alucinantes, beras, alienígenas. Depois desaguam dois ou três pensamentos tímidos, encavalitados uns nos outros, como palhaços trapalhões sem graça.

Mas há sempre uma réstia de espírito que não se consegue discernir: mero estatismo de imagens eléctricas? Talvez a raiz primeira do pensamento não seja a imagem vocabular mas a imagem desfocada de olhos passados. É como o restolho. Parece que não é importante e ninguém lhe liga, mas a partir disso, provavelmente, outras coisas podem ser geradas. Talvez seja esse o elemento fundante e gerador da recerebração da humanidade.

Por mais que quisesse teorizar as grandes verdades, universalizá-las e torná-las absolutas, tais verdades não poderiam deixar de ser pormenor. No homem, naqueles que pensam filosoficamente, dá-se um salto místico do nada para a universalidade, e na nossa pequenez isso parece certo, misticamente certo, mas ficamos corados ao explicá-lo. E, no entanto, se uma vida é apenas uma vida, é pormenor de quem a vive, então, a universalidade é um dos seus pormenores. Porque tudo aquilo que se diz ser universal é o pequenitates homem que o diz.